Psicólogas explicam como expor crianças a comportamentos e padrões adultos pode comprometer o desenvolvimento emocional e aumentar vulnerabilidades na vida adulta
Adultizar crianças, seja por meio da forma como se vestem, falam ou se comportam, é uma prática cada vez mais comum, especialmente impulsionada pelas redes sociais. A psicóloga Bruna Côrtes, especialista em Psicotrauma e Terapia Sistêmica na Norte Saúde Mental, alerta que essa exposição precoce a padrões e responsabilidades adultas pode gerar impactos duradouros no desenvolvimento emocional e social.
Segundo Bruna Côrtes, adultização infantil é quando a criança passa a adotar comportamentos, posturas ou até aparências que não correspondem à sua fase de desenvolvimento. “Isso pode acontecer ao colocar a criança em contextos que a tratam como ‘mini adulto’, seja com roupas sexualizadas, falas carregadas de conotações adultas ou exposição a temas que não são adequados para sua idade”, explica.
A especialista ressalta que é importante diferenciar estimular a autonomia, o que é saudável e necessário, de impor comportamentos adultos. “Incentivar que uma criança arrume sua cama ou escolha a própria roupa é algo que promove responsabilidade e autoconfiança. Já esperar que ela assuma papéis emocionais ou estéticos típicos de adultos, por exemplo, é um desrespeito ao seu tempo de amadurecimento”, afirma Bruna.
Com a popularização das redes sociais, o fenômeno ganhou força. Plataformas de vídeo e foto ampliam o alcance de conteúdos que retratam crianças performando comportamentos adultos, muitas vezes com aprovação massiva de seguidores. “A busca por curtidas e engajamento pode fazer com que os responsáveis ignorem os riscos. O problema é que essa validação externa não leva em conta o impacto psicológico a longo prazo”, observa a psicóloga.
Bruna Côrtes pontua que esse fenômeno é também reflexo de uma lógica cultural mais profunda. “Isso é um sintoma alarmante que vem da cultura onde, hierarquicamente, o menor ou inferior é um objeto a ser dominado e explorado, não um indivíduo que, pela vulnerabilidade, precisa ser protegido e amparado. É a mesma cultura que diz que ser superior na hierarquia me confere o gozo do poder sem as obrigações da responsabilidade”, afirma.
Outra psicóloga especialista em trauma é Bruna Madureira, que acrescenta que crianças que crescem sendo tratadas como objeto pelos adultos, além de pularem uma etapa essencial do desenvolvimento e ficarem com um grande vácuo emocional, aprendem que as relações não são justas. “Elas assimilam que precisam oferecer o seu corpo para existir na relação com o outro, entrando em vínculos utilitários e mercantilistas. O radar emocional se desenvolve quebrado, buscando o que é familiar, e isso significa aprender que, para estar em uma relação, precisam se vulnerabilizar e ser objeto sexual ou de outra ordem para o outro”, explica.

Segundo Madureira, ao chegarem à vida adulta, essas pessoas tendem a buscar relações nas quais serão abusadas e violentadas, pois internalizaram que isso é uma forma de amor e afeto. “Existe uma confusão profunda entre abuso e cuidado. Elas sentem que são vistas, amadas ou reconhecidas quando se vulnerabilizam para o outro, algo que hoje também se traduz em receber likes, um afeto totalmente falso. Essa é a denúncia de uma violência estrutural que rouba a infância e a adolescência, deixando marcas profundas e eternas, pois suas necessidades essenciais não foram vistas”, afirma.
Ela classifica essa realidade como um trauma coletivo e transgeracional. “No momento em que a criança precisa receber investimento emocional para construir uma autoestima saudável, ela é usada como objeto mercantilista para gerar lucro. Isso gera uma confusão psíquica intensa e um sofrimento profundo”, conclui Madureira.
Entre os principais danos da adultização, Bruna Côrtes cita consequências para a autoestima, o desenvolvimento emocional e até a sexualidade da criança. “A adultização precoce muitas vezes vem acompanhada de hipersexualização. Isso não só antecipa vivências que deveriam acontecer de forma gradual, mas também deixa a criança mais vulnerável a abusos”, explica.
Os impactos podem se estender até a vida adulta, resultando em ansiedade, depressão, dificuldade de estabelecer limites e problemas nos relacionamentos. “Quando a criança é colocada em papéis que não são dela, ela perde etapas importantes da infância, e isso afeta a forma como ela se percebe e se relaciona com o mundo no futuro”, afirma Bruna Côrtes.
As duas especialistas reforçam que cabe aos pais, familiares e educadores proteger a infância, garantindo que a criança tenha espaço para viver cada fase plenamente. “O desenvolvimento saudável depende de respeitar o tempo da criança. Não é privá-la de aprender, mas sim permitir que isso aconteça na sequência natural das descobertas e experiências”, pontua Bruna Côrtes.
Para ela, o debate sobre adultização infantil precisa ganhar mais visibilidade, especialmente diante do alcance das redes sociais. “Esse não é um tema restrito a famílias ou educadores, mas uma questão social. Quanto mais discutirmos e conscientizarmos, mais chances teremos de preservar a essência e a saúde mental da infância”, finaliza.
Sobre Bruna Côrtes: Bruna Côrtes é psicóloga formada pela PUC do Rio e Diretora Técnica e Psicóloga Clínica na Norte Saúde Mental. Com mais de 15 anos de experiência, atuando em diversas frentes, incluindo a Santa Casa de Misericórdia, instituição referência em atendimento e promoção de saúde no Brasil, ela é especialista em Psicotrauma e Terapia Sistêmica. É também professora e supervisora de terapeutas em formação, além de palestrante e facilitadora de vivências psicológicas coletivas.
Bruna Madureira – Facilitadora e Palestrante, Psicóloga Clínica e Organizacional – Psicóloga clínica com PhD em Psicologia e mais de 15 anos de experiência em áreas como a Força Aérea Brasileira, o Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio e Recursos Humanos, além de especialista em trauma. Sua abordagem integra Teoria Sistêmica, Gestalt-Terapia, Somatic Experiencing e Mindfulness, promovendo autoconhecimento, regulação emocional e construção de relações baseadas em segurança e pertencimento. É supervisora clínica, palestrante e facilitadora de grupos terapêuticos, com foco no desenvolvimento humano e na transformação pessoal. Acredita no poder das conexões genuínas para fortalecer indivíduos e comunidades, criando espaços onde cada história encontra acolhimento e respeito.