“Michele veio a óbito, Raquel”, essa foi a resposta ao áudio que enviei para a falecida. Ela se foi precocemente, deixando um filho de cinco anos de idade, marido, além de um séquito de fãs de trabalho e um sócio, com quem partilhava o atendimento de um bom número de mulheres. Eu era uma delas. E pude contar com o suporte da Michele e seu sócio tanto na empresa que ambos dividiam, quanto até mesmo em minha própria casa. A dupla era exímia no atendimento e se desdobrava para reter a clientela conquistada.
E Michele era uma destas muitas brasileiras aguerridas, que com pouca idade e recursos batalhou duro, se privou de muito, para conquistar patrimônio próprio, um apartamento que lhe permitia a independência suficiente para deixar claro ao marido que “não toleraria grosseria de filho dos outros na própria casa”, usando as palavras dela própria, ao me contar que falava ao companheiro que o botaria para fora de casa na hipótese do enteado destrata-la.
Em um país ainda extremamente machista e que naturaliza a situação da mulher tolerar isso e mais um pouco em nome da “manutenção da família”, ver uma manicure ter meios de se posicionar deste modo e sustentar esta escolha de vida é motivo de orgulho e aplauso. Por esta e outras coisas eu admirava a Michele, que além de manicure que me atendia com perfeição, dedicação e extremo carinho passou a ser um ícone de como devemos nos insurgir contra tudo e todos que nos oprimem ou tentam fazer isso. Afinal, na simplicidade de sua atividade, realidade material e intelectual ela criou meios para manter suas posições.
A última vez que a vi foi em minha própria casa, onde ela ainda se prontificou a trocar a fraldinha do Benjamin, porque o esmalte acabara de ser aplicado e ainda estava por secar em minhas unhas. Ao me despedir, enquanto aguardávamos o elevador, falei: “Mi, quando quiser papear, venha tomar um café. Assim como eu, você não atura desaforos, por isso lhe admiro!”, falei. Michele não teve tempo de tomar este café. Mas deixou um exemplo que deve inspirar todas as demais mulheres.
Tantas são as que – mesmo com muito mais recursos – bancam situações tão indignantes por medo ou insegurança financeira! Quantas são incapazes de se desvencilhar da própria “zona de conforto”, ainda que isto signifique casamentos nos quais não são respeitadas, tampouco valorizadas….O medo, a preguiça de criar outra situação ou a combinação destes e de outros fatores menos óbvios e mais sutis é um contexto muito mais comum para a realidade emocional que imobiliza tanta gente com imenso potencial!
Mas, tenho para mim que a opressão é fatal e sempre implode relações como estas em algum momento. Ainda que anos ou mesmo décadas depois…O grande problema de estender ou perdurar estes modelos é que quanto mais tempo duram mais nocivos se tornam para a parte prejudicada. Muitas delas saem da relação “sem saber nem qual sabor de pizza gostam”, segundo relato de uma terapeuta que entrevistei há tempos.
“Elas cedem tão continuamente que diluem a própria identidade ao extremo de perderem-se de si próprias”, completou a mesma especialista. Então, a quem lê estas linhas – sendo homem e, principalmente, mulher, eu desejo que se encontrem consigo mesmos e nunca se percam! Mais ainda, eu desejo que consigam ser respeitados e valorizados sempre, ainda que isso lhes custe viver de forma mais modesta, no aspecto material.
Assim se sentiu e escreveu, com exclusividade, para CLA Magazine, Raquel de Andrade
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